Diário de Guerrilha: 09/12/2003. Há tempos não via uma chuva tão intensa. Certa vez, assistí a um documentário na TV sobre transcomunicação instrumental. Será que existe Internet no céu ?

Para meu amigo Lourival

Há dois anos atrás, fiquei amigo de uma pessoa muito especial.

Não era a primeira vez que via aquele velhinho no supermercado do bairro. Falante, lúcido, simpático. Sempre usando aquele bonezinho azul...

Dizem que copiamos tudo o que vem de fora, que somos um povo aculturado e sem memória. Mas porquê só importamos o que não presta ? o racismo dos skinheads, a violência dos holligans, o consumismo da terra de Marlboro ? O respeito aos idosos é algo que deveríamos copiar.

No bonezinho azul daquele velhinho, um símbolo - tão famoso num passado não muito distante - e aquelas três letras - heróicas, como a História nos conta.
Mas a Geração Coca-Cola praticamente os desconhece.
O símbolo, uma cobra, fumando. As três letras: F.E.B. - Força Expedicionária Brasileira. "A Cobra está Fumando", lema e dístico do contingente militar (cerca de 25.000 soldados) que o Brasil de Vargas mandou à Europa para ajudar os Aliados a combaterem os regimes nazi-fascistas do Eixo, Alemanha e Itália, na Segunda Guerra Mundial (paradoxalmente, Vargas era um apologista do fascismo. Coisas do Brasil...).

"O Sr. foi da FEB ?" Perguntei, ao vê-lo tomando um cafezinho, naquele supermercado lotado. "Major Lourival, às suas ordens" - e, desta resposta em diante, se seguiram quase duas horas de papo sobre guerra, vitórias, lembranças dos companheiros mortos, experiências em combate. Uma rodinha se formou para acompanhar nossos assuntos... A partir deste dia, nos tormamos amigos; o Major Lourival (como gostava de ser chamado) era presidente da Associação dos Veteranos, e foi um dos entrevistados num documentário produzido pela TV Cultura/UDESC - onde fez questão de ressaltar seu lado humano - e não o de soldado. Ao invés de se vangloriar de ter matado inimigos, abordou a dor de sua esposa, que ficou à sua espera (eram noivos na época), das dificuldades (frio, escassez de comida, etc), a devoção à Deus, por permitir que ele retornasse vivo, e, sobretudo, a estupidez que toda guerra constitui.
Não foram poucas as vezes em que nos encontrávamos casualmente na rua, e nos flagrávamos conversando horas a fio - e esquecíamos de nossos compromissos.

Uma vez, comentou: "Você conhece tanto sobre História, Segunda Guerra, se interessa por isso. Porquê não participa da nossa Associação, não nos ajuda a levar pra frente, para os que não conheceram, tudo o que a gente fez ? Um dia, a gente morre, alguém tem de zelar pela memória da FEB" Me sentí honrado pelo elogio e pelo convite; a paixão pela História devo à minha mãe (professora) e pela vida militar, à meu pai (apesar de não tê-la seguido). Minha rotina profissional (um pouco, digamos, incomum, pelo horário que trabalho) acabou por impedir que eu colaborasse com a Associação dos Veteranos...

Há cerca de três meses, comentei com as caixas do mercado que nunca mais havia visto o Major. Nem elas. Fiquei preocupado. Passados mais alguns dias, com um certo mal pressentimento (sempre a minha intuição), criei coragem e perguntei ao porteiro do prédio se o Major havia se mudado.
"Não, ele faleceu; Já fazem alguns meses".
Chorei alí mesmo, e até ao ponto do ônibus que pego para trabalhar. Chorei por não poder mais conversar com o meu amigo. Com o avôzinho que nunca tive. Por ele não ter me visto participar de sua Associação, o que para ele, teria sido um orgulho.

Meu amigo Lourival, onde quer que você esteja - e tenho certeza que é um lugar bom, pela pessoa boa que você foi, que seja junto com seus amigos - aqueles por quem um dia você verteu lágrimas nos campos de combate na Itália, e não retornaram aos seus lares, ao seu país. E todos aqueles que Deus chamou para o merecido repouso. Um lugar sem tiros, sem sangue, sem dor ou ódio. Sem guerra. Só paz.

A paz pela qual você lutou.

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